28/02/2010

dedilhar as cordas da memória

dedilhar o pescoço como quem dedilha as cordas de uma guitarra. executante de vibrações no meio dos longos caracóis perdidos sob os raios de sol. os reflexos avermelhados escorrem como flores prenhes sobre a pedra calcária. o calor no frio. o azul no vermelho. fusão dos contrários. plenitude sagrada de almas famintas. silêncios tocados nos olhos pelo fervilhar de ternuras insensatas. nos lábios entreabertos, as tréguas dos desejos outrora beligerantes.
dedilhar a memória como quem dedilha um pescoço. executante de sorrisos nos lábios esquecidos lá ao longe. brilho cristalino de mãos em chama nos ombros que moldam as montanhas à minha frente. a imensidão impõe-se. o sol brilha demais! ofusca tudo. cega-me. perde-me. conquista-me.
«que queres de mim?»
mas o horizonte não traz qualquer resposta. o eco luta para não voltar e agarra-se com unhas e dentes às asas da águia que acaba de passar. e o passado regressa ao seu lugar. e o presente retrocede até aos meus braços cruzados e fechados sob o meu peito. invade-me as narinas e acorda-me.
quando abro os olhos, tenho em mim esta cantilena:
«dedilhar o pescoço como quem dedilha as cordas de uma guitarra.»
suspiro... e sorrio!

21/02/2010

eu dizia-te...

eu dizia-te
que o sonho acontece,
não fosse sentir
que te escapas por entre os dedos
como a areia de um relógio,
dizia-te que quando se ousa... acontece,
não fosse pressentir
que levantas amarras
para navegar os ponteiros que te faltam,
dizia-te (sussurrando...
bem perto do teu peito)
que o fogo foi criado
para arder e...
as mãos...
para explorar os rostos
de cada boca
que nos atravessa
nos ângulos imperfeitos,
dizia-te mentiras e verdades
só para te desfrutar,
não fosse esta avareza de alma
destruir a delicada teia
de fios invisíveis que...
estendeste até mim.
dizia-te
tudo isto,
dizia-te
tudo o que não disse.

In "Os dias do Amor", com recolha, selecção e organização de Inês Ramos, da Ministério dos Livros, p. 361

Ámen

hoje, vou enterrar-te
como se enterram os mortos,
deixar-te inacabado
em suspensão infinita
neste ar rarefeito
do tango que me escureceu,
vou lançar-te ao mar
e cobrir-me de luto,
esquecer-te nos foles
do velho acordeão,
matar-te, com estas mãos,
e chorar toda a mágoa.
hoje, vou virar a página,
beijar os teus lábios mortos,
tapar-me com o véu mais preto
e partir da mulher que já não sou
em busca da que quero ser...

06/02/2010

As Orquídeas

Gostava das coisas simples, não porque não fossem vistosas, aparatosas, não por timidez ou receio de dar nas vistas, mas apenas por condizerem com o seu estado de alma. A simplicidade na medida da necessidade, em tudo: na roupa, nos adereços, no rosto, nos gestos, nos alimentos, na forma como ia alinhavando os dias que se lhe ofereciam de braços abertos. Nas palavras! Substantivos sem muitos adjectivos. Adjectivos q.b., que quem bebesse percebesse logo, ainda que o significado de uma ou outra palavra se escondesse no interior de um qualquer dicionário, esquecido da boca dos homens, à espera de ser descoberto. Para perceber uma palavra desconhecida, nem sempre é preciso conhecer o seu significado. Basta sentir o contexto e, então, a palavra abre-se dentro de nós, num desabrochar quase perfeito.
Costumava semear palavras singelas no seu jardim, aninhado num viçoso manto verde, abraçado por buganvílias brancas e amarelas. Nua, com os longos cabelos brancos a cobrir um corpo perfeito, de setenta anos, plantava cada palavra com o mesmo carinho de quem trata um bebé indefeso. Cumpria este ritual diário despida de tudo o que era supérfluo, em serena comunhão com a ordem natural das coisas.
Só ao atravessar o começo das convenções, a ombreira das traseiras da casa, se cobria com um vestido de algodão, calçando um par de sapatos rasos, que permitia à planta dos pés casar-se com cada superfície que palmilhava. Ali, dentro de casa, era esta nudez vestida a que se conciliava com os olhares das fotografias, dos quadros, com a presença das memórias em cada recanto da sua vida.
Hoje, sabia que seria o seu último dia de jardinagem. Não mais cultivaria palavras sedentas de terra, de minerais, de água. Não mais veria o reflexo do seu corpo nu sorrir nas tranquilas águas do velho fontanário.
Quando transpôs a ombreira das convenções e viu as orquídeas que as suas palavras haviam apascentado, beijou as lágrimas de orvalho que escorriam saudosamente das belas flores. E transformou-se ela própria numa palavra, na justa medida das necessidades: obrigada!

Double Scull

aqui

Rompem-se as águas
pela aurora,
casca de noz
escorrega asinha
no verde-escuro
sedento de luz,
brisa serena
lenço de seda,
mãos calejadas
abraçam os remos,
debaixo da ponte
ecoam as pás,
sulcam as águas
em esforço tenaz,
o slide escapa-se
até à proa,
os remos dão
um beijo fugaz,
o slide dança
até à popa
ritmado e cadente,
os remos viram costas
zangados, cansados,
mas a paixão é louca
e logo procuram
ambos a boca, famintos...
História de amor
compassada,
num barco a remos
projectada,
rasga-se o ventre
do manto molhado!