05/03/2010

e acordo...

falésia sem fim. escarpada. negra. laminada. devorada pela aurora da descoberta. traga-me o sono. as gaivotas traçam rotas desencontradas às recordações suspensas nas mãos que ainda não conheço. desliza em perfeita simetria nesta língua corrompida o sabor do sal, das algas, dos líquenes urdidos nos teus lábios. gritas com as mãos em concha. mas eu não oiço. não oiço... perdido no horizonte, sem prelúdio. embaciado pela neblina das incertezas. as aves trazem no bico oferendas aos deuses. o sol lambe-me as mãos, o rosto, os cabelos. incendeia. arde-me. as mãos, sempre as mãos, e um rosto sem ninguém no meu sonho. o vestido que cobre este tronco noduloso esvoaça por entre os afagos marítimos. embalada. no cimo da falésia. a música que ampara os meus ombros, que calça os meus pés de lã grosseira. fulminada. vida que dói e arde nos pulmões.
e acordo subitamente, alagada em suor, a arfar, sem saber muito bem onde estou, se numa qualquer tela surrealista, se nas chamas em que estes lençóis ardem...

Fado Meu

A saudade que mora em mim
veste-se de xaile negro
tem a voz embargada
julga ser pequeno nada,
à beira da falésia
canta toadas de amor
embrulhadas na dor
da ausência tua,
esta saudade é capital
selvagem e animal
de cor de vinho vestida
no meu peito latejando,
arrastada na voz silente
à meia-luz de noite estrelada
verseja nas cordas da guitarra
cada espaço de mim exilado...

In "Nas águas do verso", organizado por João Filipe Ferreira e Pedro Lopes, Edições Ecopy, p. 57