27/01/2010

um dia na vida de um menino

...queria escrever e não tinha como. nem papel, nem lápis. nem um painel de areia para resgatar ao mundo dos sonhos as palavras que queria entrelaçar com toda a doçura que conhecia. fez um trejeito maroto, enfiou as mãos nos bolsos, e lá foi andando pelo caminho de terra batida, com cheiro a folhas douradas, a coelhos a sair da cartola, a aviões mágicos que rasavam o manto de erva viçosa e, logo no minuto seguinte, alcançavam as nuvens penduradas lá bem no alto. e decidiu que ia escrever mais logo, quando a noite se lembrasse que era hora de começar a sacudir magos e feiticeiras para encantar todos os meninos. escreveria nas estrelas (se o céu estivesse limpo) ou até mesmo no vapor de água condensado colado às janelas (caso o céu não quisesse ser incomodado).
mais alguns passos dançantes e despreocupados à frente, e logo as mãos voaram para alcançar um cão pequenito, que mal abria os olhos, perdido do tempo das mães, no frio ingrato das pedras que conspiravam contra as pequenas almofadas das suas patas. parecia até que ainda não sabia andar... aconchegou o cãozito, abriu o fecho do casaco até meio e, sem pensar duas vezes, enfiou-o ali mesmo junto ao peito, segurando-o com as suas mãos de menino.
claro que, entretanto, já tinha escrito todo um conto fantástico com os olhos na paisagem que se ia abrindo à sua passagem. e recitava-o, de cor e salteado, como se a convencer-se, resoluto, que ia reescrever aquela estória junto da mãe e que ela já fazia parte dos seus próximos dias. até àqueles dias em que, quando deixasse de ser menino, voltaria ao dia de hoje para se reencontrar...

África















aqui

Trouxe na memória o vermelho da terra,
Os poilões que se abrem como os livros,
A quente humidade que se cola à pele,
O pôr-do-sol abrasador que esmaga a linha do horizonte,
As cores vivas que por todo o lado inundam a vida,
Os enormes formigueiros das termiteiras,
Os cotos dos arbustos em praias de criação recente,
O coaxar sem fim dos batráquios pela noite dentro,
A espuma cremosa de um café bem batido,
O gosto das ostras abertas sobre a chapa quente,
Os mangueiros e cajueiros que crescem rebeldes,
O sabor de um bom chabéu à mesa de amigos,
A diversidade cultural que pulula nas ruas,
Os papéis e os balantas e todas as outras etnias,
O burburinho da entrada e saída dos táxis colectivos,
As boleias cravadas em todas as estradas,
A travessia do tranquilo rio a caminho de Farim,
As quedas de água e a força do rio no Sul,
As grossas gotas das chuvas num manto sem fim,
A alegria de um viver diferente.
Trouxe na alma um feitiço, certamente...
Pois cá tão longe ela chama por mim,
Impiedosa, insistente,
Como se pudesse haver um amor assim!

Oiça a declamação do poema, pela voz de Luis Gaspar

17/01/2010
















sobre a laje desfolharam-se as asas do pequeno anjo, de semblante sisudo, adormecido na frieza das lágrimas de pedra. Não estava pronto! Não sabia como ir! O pequeno corpo jazia cinzento em sepulcral silêncio, contrastando com a castidade da aura que lhe estendia os braços e espargia afagos mornos sobre o cadáver. Ardiam-lhe ainda no sangue as bofetadas e os pontapés distribuídos gratuitamente pelo seu corpo, dia após dia, noite após noite, apenas porque sim e por razão alguma. Não sabia que podia voar... ainda! Ecoava no desvão da memória, envolta em nevoeiro e chuva, bem perto, o azedume das palavras proibidas e assassinas com que era vergastado pelo hálito etílico, pelos olhos inchados de narcóticos («A culpa é tua! Sai-me da frente, paspalhão... não serves p'ra nada! Monte de esterco!»). Doíam-lhe mais os impropérios aviltantes que as nódoas negras e os hematomas cirurgicamente esculpidos em cada esquina do seu corpo. Uma das estrelas desprendeu-se da abóboda celeste e planou suspensa no tempo... sobrevoou o pequenito - que se chamava como todos os meninos se chamam - e desfez-se em pó cristalino que fez nascer mágicas gotículas de orvalho nos lábios do pequeno anjo. Não conheceu o amor, mas sabia amar... e pôde voar, voar, voar... anjo meu!
Na lápide, apenas um nome e duas datas, próximas demais para deixar qualquer um indiferente!