19/06/2010

xadrez

o fim dos tempos
está no início inscrito
e o começo de tudo
espreita altivo do fim
é luz, magia
massa e energia
neste voo alinhavado
sobre tenro pecado
nesta estrada estelar
de sinergias feita
é alma em chama
e zero absoluto
equação incompleta
em sonhos desperta
universo sem fim
cabes no meu bolso
és só ou peão
no xadrez
que Deuz fez?

Beware of the wolves

The nightingale spoke
The words of the Forgotten
On the edge of a cliff
Swallowed by the roar of the sea.
They came with the wind
Cut by scissors of salt
And Mother Nature cried
Their torn apart tears.
In the cradle awoken
They just came to pray:
Beware of the wolves,
Beware of the wolves, they say!

tua

se o tempo não se esquecer, há-de levar-me o corpo queimado de vida, marcado por cicatrizes de instantes felizes, segundos sem igual, emoções rubras e azuis. papoila desmanchada entre os dedos ávidos de terra e pó. sou mera estrada, pedra da calçada.
se o tempo não se esquecer, há-de arrancar-me o sopro da vida com o beijo da morte. e será o beijo mais doce de sempre, mais terno e apetecido.
«esperei tanto por ti! pensava que nunca mais chegavas.»
sei-te do lado de lá. não me perguntes como, mas sei. não foi a estrela, nem a palma da mão. não! és tu que estás impregnado em mim, como um perfume que não sai. cheiro-te em mim, sabes-me na minha língua, na saliva que liberto só de te escrever.
anjo negro que velas por mim. sabes-me tua. dá-me o beijo da morte. ou atravessa a porta, porque estou aqui, à espera, ausente, presente em ti.
se o tempo não se esquecer, vai comer-me a pele e os ossos, beber o meu sangue e segurar o começo e o fim no mesmo instante. e o brilho será intenso. cegará os homens e os deuses. cegará a boca do espaço e serei, enfim, tua...

08/06/2010

ainda não era o tempo

ainda não era o tempo
de a lua se despir
enquanto declamava
os peixes que ondulavam
no seu ventre macio,

ainda não era o tempo
de o eco distante se libertar
penetrando nos poros sequiosos
das bocas que abriam caminho
ao voo dos girassóis,

ainda não era o tempo
de a alma chorar
estrelas-do-mar e ouriços
enquanto cantava o silêncio
de um amor quebrado no molhe,

ainda não era o tempo
-ouvia-se-
ainda não era o tempo
de as horas não existirem
no entrelaçar de sorrisos
na dança de olhares vivos
no alento de um amor sonhado.

no silêncio

-Não achas que está na altura de fazermos as pazes?
-... (silêncio).
-Estou zangada contigo há demasiado tempo. Cansada de estar zangada. Não me adianta de muito, pois não?
-... (muito silêncio, na penumbra do som).
-Vou tentar não te culpar por mais nada. A culpa é coisa nossa, não é?
-... (breve tartamudear da brisa).
-Dá-me, ao menos, alento. Não consigo encontrar-me em mim. Deixa-me repousar o cansaço no teu colo. Serena-me... lentamente...
-... (a superfície do deserto que serpenteia ao de leve).
-Junta-te a mim. Vem. Tenho fome de espírito. Limpa-me as lágrimas que não caem... não consigo chorar.
-... (breve arrulhar das folhas perenes).
-Dói-me. Ali... no princípio. Fica comigo mais um pouco...
-... (o silêncio cantado é o mais belo dos silêncios).
(conversa com Deus)

ecce homo

o frio cortava o rosto como lâminas afiadas. segurou a gola do casaco para tapar o pescoço. só via os pés e as pernas de outros rostos que não conhecia. de cada lado das ruas graníticas corria um rio de gente, em silêncio, em comunhão com Ele. as velas nas mãos gretadas, geladas. mãos despidas. mãos... abertas. a luz na escuridão. vislumbre de compaixão. queria cuspir a culpa, mas ela não caiu. continuou a andar, acompanhando a procissão. era tarde. noite cerrada. estava cansado. exausto. caminhava com passo cadenciado e seguro num caminho errante que se ia desenhando à sua frente de forma tímida. torrente de calor. espírito materializado. alento. amor. amor. amor. continuou embalado, como se em transe. quando se deitou, percebeu que era apenas humano. podia chorar. e chorou. sem receio, sem vergonha, sem pressas.