19/01/2011

o outro lado

olá! chamo-me João, tenho 86 anos colados à pele, alguma saúde sorridente de sobra e um fiel amigo - o Barnabé - que me faz companhia do nascer ao pôr-do-sol. acordo com as lambidelas frescas do Barnabé. já me custa procurar as pantufas coçadas, apesar de estarem sempre no mesmo sítio em que as deixo na noite anterior. o dia começa sem pancadas de Moliére que anunciem promessas de emoção. o tempo passa muitooooooo devagar, com os ponteiros do relógio a atrasarem-se propositadamente, jocosos... o ritual dos medicamentos não sofre sobressaltos.
o silêncio... começa a lamber-me bem cedo e devora-me por completo lá pela hora do almoço, quando me lembro que tenho quatro filhos e sete netos, sempre demasiado ocupados para me ver ou telefonar.
à tarde, gosto de ouvir rádio com o Barnabé, para não pensar em engolir as caixas de comprimidos todas de uma só vez.
«e os comprimidos ali à mão de semear, tentadores, tranquilizadores.»
fecho os olhos, encosto a cabeça ao cadeirão fofo semeado de borbotos, o Barnabé aconchega-se nas minhas pernas constantemente roídas pela dor e lá acaba por chegar a noite, vazia, sem qualquer oferta de estrelas e lua para estes velhos ossos.
não era capaz de deixar só, ao acaso, um amigo leal como o meu!
aqui, sou só uma história... mas aí, sou o outro lado de si!

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