19/02/2011

por instantes...

o cheiro a madeira e os estalidos do palco invadiam-lhe os sentidos.
um, dois, três. um, dois, três. um, dois, três...
pirueta atrás de pirueta, as tábuas de madeira do palco gritavam vida com cada gesto que libertava. o suor escorria pela testa, beijava ao de leve os lábios e prosseguia acariciando o pescoço numa dança de sensualidade pura. o ar deslocava-se num vaivém voluptuoso com a constante abertura e fecho circular dos braços, o rodopiar da cabeça, primeiro agressivo, depois macio, com o trautear das pernas e dos pés que beijavam violentamente o chão.
harmonia pura! comunhão com Deus. vida, Vida, VIDA! não existia mais nada naqueles instantes. só a fusão com o todo, as vibrações da música que tocava dentro de si, assim, inusitadamente.
rompia o silencio das sombras. continuava incessante. e o cheiro a madeira que lhe invadia as narinas. e o cheiro a madeira entranhado na carne. e os estalidos crepitantes que reclamavam mais, e mais, e mais.
quando deslizou sobre o palco, depois de fazer uma espargata que rasgou o final da música calada, deixou-se ficar em comunhão com o palco, de rosto adormecido no seu colo, com os lábios a tocar ao de leve os poros das tábuas, como se o palco fosse o amante das horas incertas, o companheiro dos seus segredos mais íntimos. os nós dos dedos. os nós da madeira.
acaricia-me os cabelos.

já não te amo

queria publicar o texto, mas em braille. seria apenas acessível aos que não faziam parte do seu círculo, aos leitores mais lúcidos. aos que teriam de utilizar o tacto para sentir todas as matizes e tonalidades desmaiadas sobre as folhas perfuradas. o toque. e as letras. entrelaçados nos sentidos mais íntimos das páginas em branco da sua memória, gasta pela repetição de acontecimentos surdos de si próprio.
«tu não o poderias ler, a não ser que aprendesses braille. mas cega como és, duvido muito que alguma vez apreendesses o alcance das linhas ali marcadas a ferro e fogo. falta-te a vontade. ou é a mim que me falta lucidez...»
(ela, distante, a dormitar, sem perceber nada do que ele estava para ali a ruminar a meia-voz)
«estarei a ser arrogante?» - interrogava-se.
o que ele sentia era aquela não pertença sem nome dos que se sentem vazios nas águas de uma solidão desmedida, embora rodeados de gente viva, de afectos, de palavras, de gestos, mas sós, sempre sós, sempre... o rodopio das imagens, das cores, dos sons, como se fosse desmaiar a qualquer segundo, como se o tempo fosse diferente para ele, para o seu exíguo espaço, para o seu corpo extenuado de ausências, de alheamentos da vida uterina.
«só com os teus dedos conseguirás perceber este aperto, os nós na garganta, as lágrimas retidas nos canais lacrimais, como se entupidos de uma estação atarefada em esquecer-se das folhas mortas.»
sim, ia publicá-lo apenas em braille. estava decidido. não por consideração para com os cegos, não para causar sensação, mas por já não querer saber de nada. e por, no seu íntimo, estar convicto de que entre eles havia um arrazoado de nós que há muito havia deixado de fazer sentido, que não mantinha a balança equilibrada quando contraposto aos dias por chegar. nós que queriam libertar-se dos cabos...
«como dizer-te que já não te amo?»
ela nao iria perceber. ainda que ele lhe mostrasse o texto. ainda que ela aprendesse braille. ainda ontem se beijaram e abraçaram com tanta ternura depois de fazerem amor... mas ela não viu que já não era ele quem ali estava. era só um corpo emprestado. os corpos não se pedem emprestados quando ainda há vida. e para estar vivo não é preciso um corpo. basta sabê-lo!

05/02/2011

especiarias

o beijo que me deves
quero-o a saber a canela,
com um toque de baunilha,
o beijo que se segue
tem de ter pimenta preta,
cor de aniz e açafrão,
o beijo que sela o grito
é pintado de erva-doce,
menta e gotas de limão,
o beijo que me pedes
só vai temperado com paixão!

proclamar o amor!

proclamar o amor
não é ser piegas
nem sentimental
e muito menos banal,
é bater as asas ao vento
cortar a crista das ondas
mergulhar em espiral no ventre da Terra!
proclamar o amor
não é ser inferior
nem texto reduzido
ou despido de sentido,
é ser diamante em bruto
ter são atributo
alma mergulhada no sangue em chama!
proclamar o amor
não é ser embalagem vazia
e fitas de cetim enfeitada
ou mero pintalgar cor-de-rosa,
é cortar as redes entrançadas
e dançar no trapézio a valsa
na noite mais negra e escura!
proclamar o amor
não é dar à luz palavras bonitas
de cor carmesim vestidas
mas que voam para nenhures,
é oferecer ao Mundo a nossa carne
e dar a beber o nosso sangue
até nos esvairmos por completo
nas mãos de quem quer que seja!