19/02/2011

já não te amo

queria publicar o texto, mas em braille. seria apenas acessível aos que não faziam parte do seu círculo, aos leitores mais lúcidos. aos que teriam de utilizar o tacto para sentir todas as matizes e tonalidades desmaiadas sobre as folhas perfuradas. o toque. e as letras. entrelaçados nos sentidos mais íntimos das páginas em branco da sua memória, gasta pela repetição de acontecimentos surdos de si próprio.
«tu não o poderias ler, a não ser que aprendesses braille. mas cega como és, duvido muito que alguma vez apreendesses o alcance das linhas ali marcadas a ferro e fogo. falta-te a vontade. ou é a mim que me falta lucidez...»
(ela, distante, a dormitar, sem perceber nada do que ele estava para ali a ruminar a meia-voz)
«estarei a ser arrogante?» - interrogava-se.
o que ele sentia era aquela não pertença sem nome dos que se sentem vazios nas águas de uma solidão desmedida, embora rodeados de gente viva, de afectos, de palavras, de gestos, mas sós, sempre sós, sempre... o rodopio das imagens, das cores, dos sons, como se fosse desmaiar a qualquer segundo, como se o tempo fosse diferente para ele, para o seu exíguo espaço, para o seu corpo extenuado de ausências, de alheamentos da vida uterina.
«só com os teus dedos conseguirás perceber este aperto, os nós na garganta, as lágrimas retidas nos canais lacrimais, como se entupidos de uma estação atarefada em esquecer-se das folhas mortas.»
sim, ia publicá-lo apenas em braille. estava decidido. não por consideração para com os cegos, não para causar sensação, mas por já não querer saber de nada. e por, no seu íntimo, estar convicto de que entre eles havia um arrazoado de nós que há muito havia deixado de fazer sentido, que não mantinha a balança equilibrada quando contraposto aos dias por chegar. nós que queriam libertar-se dos cabos...
«como dizer-te que já não te amo?»
ela nao iria perceber. ainda que ele lhe mostrasse o texto. ainda que ela aprendesse braille. ainda ontem se beijaram e abraçaram com tanta ternura depois de fazerem amor... mas ela não viu que já não era ele quem ali estava. era só um corpo emprestado. os corpos não se pedem emprestados quando ainda há vida. e para estar vivo não é preciso um corpo. basta sabê-lo!

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