14/03/2011

Ana

com uma pequena tatuagem de um colibri sobre o ombro direito, desnudo e liberto da grossa camisola branca de lã com a gola arredondada, que fazia lembrar a boca de um vulcão, Ana passeava o seu corpo sobre os passeios mal iluminados e escondidos dos bairros residenciais circundantes; meneava-se sobre os saltos altos de onde jorrava um par de pernas escanzeladas, adornadas por meias de vidro que terminavam onde começava a curta saia axadrezada. os cigarros que consumia avidamente não chegavam para lhe roubar o frio dos ossos, nem o torpor da alma.
«preciso de beber um copo.»
estava disposta a vender-se por um pouco de calor. e por cigarros. não lhe importava o dinheiro, por uma vez que fosse. mesmo que o estômago estivesse vazio há demasiadas horas. mesmo que a droga lhe faltasse no cérebro para poder continuar mais um pouco.
«nem um gajo aparece!»
e a véspera de Natal até costumava ser boa, mas naquele dia não conseguia perceber o vazio de gente. não tinha um ar andrajoso, embora também não enchesse o olho a alguém sem a junção de mais qualquer coisa - um gesto, meia dúzia de palavras, um convite explícito. os cabelos compridos ofereciam-lhe um ar adolescente. tinha um rosto anguloso, mas bem estruturado, assente sobre um corpo franzino,
farta de martelar a calçada com os saltos altos onde se pendurava, endireitou-se, encostou a carteira coçada e gasta ao peito com brusquidão e meteu-se a caminho em direcção a casa, onde não a esperava qualquer Natal, mas apenas um dia 25 de Dezembro, como outro qualquer, com o mesmo vazio no estômago, com a mesma ausência de lágrimas de sempre, onde os dias não tinham o atrevimento de ser diferentes, por uma vez que fosse.

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